Cavalgada pelos caminhos de Guimarães Rosa

Cavalgada Grande Sertão Veredas Minas Gerais Misto Brasil
A cavalgada é uma homenagem às narrativas de Guimarães Rosa/Arquivo/Divulgação

A reportagem é de abril de 2005, quando cavaleiros “desbravaram” o sertão de Minas com a lembrança do livro histórico

Por Gilmar Corrêa – DF

Fogos de artifício e faixas saudaram a chegada da comitiva de cavaleiros na pequena Paredão de Minas, distrito mineiro que ficou conhecido no romance “Grande Sertão: Veredas”.

Foi neste local que Riobaldo descobriu a verdadeira identidade de Diadorim, seu companheiro de guerra que na verdade era mulher. A chegada na vila banhada pelo rio do Sono encerrou uma longa jornada.

No trecho de 92 quilômetros por sertões, campos e veredas ainda há o ambiente retratado pelo escritor João Guimarães Rosa, que soube descrever a cultura caipira e a natureza do cerrado do Sul da Bahia e do Norte de Minas.

O foguetório animou o cansado grupo de cavaleiros – homens, mulheres e crianças. Foram 16 horas no lombo de cavalos, mulas e burros na quarta cavalgada que parte todos os anos do município de Buritizeiro na sexta-feira da Semana Santa.

Assim como narrou Riobaldo, “deviam de ser perto de duns cem. Aquilo era uma alegria. A poeirada que levantavam, os cavalos que rinchavam bem… A alta poeira, que demorava. Aquilo parecia uma música tocando. A gente sorvia o bafejo – o cheiro de crinas e rabos sacudidos, o pêlo deles, de suor velho, semeado das poeiras do sertão”.

Entre o grupo, estavam antigos vaqueiros e fazendeiros, como Rubem de Queiroz, de 67 anos, que conheceu Manuelzão, outro personagem popular retratado pelo médico e diplomata mineiro. Ou Vicente Carneiro Barbosa, que faz 80 anos em julho. Chiclete, como é mais conhecido, participou de todas as edições da cavalgada montado numa mula. “Monto em cavalo desde criança”, diz satisfeito.

Os cavaleiros partiram das margens do rio São Francisco, em Buritizeiro – ao lado do município de Pirapora -, com atraso. A ausência de uma disciplina militar ou a chefia forte do antigo cangaço atrasou muita gente.

A largada foi uma festa. Mas a animação começou a cair no primeiro trecho de 13 quilômetros, quando houve uma primeira parada para descanso na Fazenda São Francisco. A falta de hábito em montar ameaçava muitos participantes. O calor do sertão também cansava as montarias.

O ambiente de Sol abrasador parecia com aquele descrito por Riobaldo na Bahia. “A calamidade de quente! E o esbraseado, o estufo, a dor do calor em todos os corpos que a gente tem. Os cavalos venteando – se ouvia o resfol deles, cavalanços, e o trabalho custoso de suas passadas”.

Três cavaleiros ficaram a pé entre a primeira e a segunda paradas, às 13h30. O delegado regional de Pirapora, Cléber Pevidor, seguiu viagem montado. Trocou seu cavalo por um outro graças a um acordo com o morador da fazenda na nascente do córrego Jatobá.

A trovoada que despencou na saída do descanso foi salvadora. Sem ela, as perdas seriam ainda maiores. Capas de chuva foram arrancadas do alforje.

Com a temperatura bem mais amena, o grupo de cavaleiros chegou no início da noite na Fazenda Lagoão para dormir. Antes, teriam de montar barraca, lavar cavalos e organizar o acampamento para o jantar.

A falta de energia elétrica exigiu um pouco mais do pessoal. Depois da comida – 60 quilos de “mandeirizada” (peixe típico do rio São Francisco), 20 quilos de arroz e cinco quilos de pirão -, a roda da viola atravessou a madrugada.

Cavalgada Grande Sertão Veredas Minas Gerais Misto Brasil
Pausa na cavalgada para o cavalo beber água na trilha do Cerrado/Arquivo

A riqueza da fauna não é mais a mesma

A alvorada foi às 5h30. Um bando de mais de 30 papagaios e araras-azuis deu as boas-vindas. O grupo acordou animado, mas só desmontou acampamento quando o sol já começava a esquentar. O segundo trecho de 50 quilômetros foi bem melhor e mais emocionante.

A noite úmida e a chuva anterior encharcaram as veredas, que se transformaram em armadilhas. Nas palavras de Riobaldo, “tudo em volta é um barro colador, que segura até casco de mula, arranca ferradura por ferradura”.

Numa delas, pelo menos três cavalos atolaram no lamaçal, jogando os cavaleiros ao chão.

Novo bando de araras-azuis sobrevoa os cavaleiros, que caminham em fila indiana. Mas a riqueza da fauna descrita por Riobaldo não existe mais. São avistados poucos pássaros e alguns rastros de capivaras.

Diversas veredas estão assoreadas de areia. É o resultado do reflorestamento por eucalipto, diz Dênio Maia – um dos organizadores da cavalgada e interessado nas questões ambientais.

Milhares de hectares de Cerrado foram substituídos pela flora exótica, que sofreu com uma praga de formiga que dizimou milhões de mudas. “Acho que sobraram uns 20% do que foi plantado”, avalia Maia. O plantio de eucalipto foi uma decisão governamental para garantir a sobrevivência das indústrias siderúrgicas e frear a destruição da flora nativa.

A primeira grande parada para descanso do segundo dia foi na cachoeira Grande, formada pelo ribeirão da Areia, afluente do rio Paracatu que deságua no rio São Francisco.

São 80 metros de altura por 100 metros de largura. Como disse Riobaldo, “tem a cachoeira de escadinhas”. “Cachoeira é barranco de água, e água se caindo por ele, retombando: o senhor consome essa água ou desfaz o barranco”.

Foi neste local de rara beleza que a TV Globo filmou algumas cenas da minissérie “Grande Sertão”.

A chegada à noite no distrito de Paredão de Minas foi um alívio. O cansaço tomava conta de todos. O sentimento era como o de Riobaldo: “Eu apeei e amarrei o animal num pau da cerca. Pelo dentro, minhas pernas doíam, por tanto que desses três dias a gente se sustava de custoso varar: circunstância de 30 léguas”.

Não foram três dias ou 30 léguas. Mas para esses cavaleiros modernos armados de máquina fotográfica, os 92 quilômetros ou 15 léguas mais pareciam os 180 quilômetros percorridos pelo herói de João Guimarães Rosa.

À noite, um arrasta-pé com a comunidade local serviu para colocar a conversa da cavalgada em dia e fazer planos para a cavalgada do próximo ano.

Pobreza no sertão “do tamanho do mundo”

A promessa do chefe dos jagunços Zé Bebelo, caso fosse deputado, de reluzir de perfeito o Norte, “botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas”, está longe de ocorrer.

A pobreza ainda é grande no sertão “do tamanho do mundo”, como exagerava Guimarães Rosa, e ainda há moradores sem energia elétrica.

Nuno José Gonçalves mora sozinho na cabana que fica no caminho da cavalgada Grande Sertão: Veredas. Ele não tem rádio, televisão ou energia elétrica.

Vê pouca gente. Fica admirado ao assistir a dezenas de cavaleiros passar perto do seu quintal. “Nunca vi tanto cavaleiro, não, moço”. E morar sozinho, assim no meio do nada, é bom? “É, é bom, sim”.

Mas o tempo, as coisas e até os nomes costumam mudar, mesmo numa região tão remota. Eustáquio de Queiroz Filho, o seu Eustaquinho, 70 anos, ficou naquele dilema narrado pelo jagunço Riobaldo. (“Todos os nomes eles vão alterando… Nome de lugar onde alguém já nasceu devia de estar sagrado”).

Eustaquinho diz que “a gente não conhece mais nada, não. Antes, a gente conhecia o lugar pelas trilhas. Hoje, arrancaram tudo. Plantaram eucalipto, arrancaram eucalipto…”

Eustaquinho e seu irmão Rubem Queiroz acompanham a cavalgada com a carga da experiência. Até 1967 os dois tocaram boiada (“Até 300, 400 reses de cada vez”) pelo sertão das gerais. “Sem estrada, a gente tinha de fazer”, resume.

E assim como no livro de Guimarães Rosa, a cavalgada da Semana Santa também teve seu alemão – “esse era estranja”. Werner Heimann, ao contrário do Vupes de Riobaldo, não é negociante de “trazer e vender de tudo para os fazendeiros”, mas médico. Casado com uma brasileira, Heimann está há 18 anos no Brasil.

Em Belo Horizonte, é especialista em gastroenterologia e endoscopia digestiva. Mas assim como Vupes, fala no infinitivo, carregando nos verbos. Ele veio cavalgar com mais cinco amigos, entre eles outro médico, o cirurgião Paulo Auler, que trouxe sua própria montaria, um manga-larga marchador que deu inveja a muita gente.

Escritor Guimarães Rosa montaria cavalgada Misto Brasil
Guimarães Rosa fez narrativas que retratam a vida do caipira brasileiro/Arquivo/Divulgação

Um escritor de múltiplas atividades

João Guimarães Rosa teve múltiplas atividades. Notabilizou-se como escritor de grandes clássicos da literatura brasileira. Tinha uma vida sedentária, era viciado em tabaco e tinha hipertensão arterial.

Morreu no Rio de Janeiro ainda novo, aos 59 anos, longe de sua Cordisburgo, ainda hoje um pacato município mineiro com 8.558 habitantes (conforme o IBGE).

Rosa escreveu várias obras, como a reportagem poética “Com o Vaqueiro Mariano”, a partir do depoimento de Manuel Narde, o Manuelzão, que morreu em maio de 1997.

A principal obra foi “Grande Sertão: Veredas”, lançada em maio de 1956. A narrativa épica de 620 páginas foi iniciada dois anos antes, quando Guimarães Rosa tinha 38 anos. É contada na primeira pessoa pelo personagem Riobaldo, ex-jagunço que perambulou pelo Sul de Minas, Goiás e, especialmente, Norte de Minas Gerais

O escritor mineiro foi por duas vezes indicado à Academia Brasileira de Letras (ABL). Venceu por unanimidade em 1963, mas tomou posse somente quatro anos após, em novembro de 1967, três dias antes de sua morte, num apartamento em Copacabana.

Informativo Misto Brasil

Inscreva-se para receber conteúdo exclusivo gratuito no seu e-mail, todas as semanas

Assuntos Relacionados


Informativo Misto Brasil

Inscreva-se para receber conteúdo exclusivo gratuito no seu e-mail, todas as semanas