Comida em transe e a corrida dos ratos

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A democracia é um regime que permite a participação de todos/Arquivo/Fernando Frazão/Agência Brasil

Não se engana se pensar que estamos atolados no sistema de Plantation: monocultura e trabalho escravo, ou, “modernamente”, análogo à escravidão

Por André César e Vinício Carrilho Martinez, cientista social 

O Brasil fez e faz escolhas, assim como todos nós. Pragmaticamente, escolhemos a periferia política – claro que contando com enorme auxílio externo – e com isso os golpes institucionais são ameaça presente ou realidade.

Conceitualmente, chutamos a educação pública ladeira abaixo sempre que possível ou toda hora, decretamos que “a ciência não presta” – mesmo que em 2024 pessoas ainda morram pela Covid-19 e se recusem a tomar a vacina -, condenamos a cultura nacional, em troca da apropriação verde-amarela pelo Fascismo Nacional, “vendemos” em dízimos a salvação dos “bons costumes” e seguimos praticando a enorme e eterna hipocrisia: predomina o enriquecimento às custas dos outros.

Em conjunto a isto, apostamos em sistemas em que as instituições são atacadas cada vez mais, as chamadas “elites plutocráticas” (os piores possíveis) seguem o ritmo de esculhambar a economia nacional, apostam tudo no capitalismo rentista (especulativo, improdutivo) e na desindustrialização: ao invés de investirem em negócios que gerem renda e emprego, aplicam na Bolsa de Valores.

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Com esse perfil, o país parece condenado a repetir seu passado, como eterno retorno – e assim é, pois basta pensar que o agronegócio (entupido de veneno: agrotóxico) é a princesa dos olhos.

Pode-se destruir toda a natureza, eliminar as pessoas (com automação), desde que o PIB (Produto Interno Bruto) seja abastecido com a venda do resultado da “mais valia da natureza” e dos trabalhadores esfarrapados.

Quem lê, não se engana se pensar que estamos atolados no sistema de Plantation: monocultura e trabalho escravo, ou, “modernamente”, análogo à escravidão.

Vamos aos fatos, aos números…

Os fatos estão por toda parte e representam uma realidade delicada do cotidiano, não somente no Brasil mas também planeta afora. Os preços de diversos alimentos enfrentam fortes altas, dificultando ainda mais a vida dos pobres (ou nem tão pobres) em todos os cantos.

Aos exemplos. Em fevereiro, o preço da laranja chegou ao maior patamar dos últimos 30 anos no estado de São Paulo, de acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Esalq, o campus da Universidade de São Paulo (USP) localizado em Piracicaba.

No acumulado dos últimos doze meses, o valor da fruta superou a cotação nacional, que já estava elevada. As explicações para o aumento são as altas temperaturas registradas e os impactos do greening, doença provocada por bactéria que afeta a citricultura no mundo. Cenário dramático.

Outro produto que passa por situação similar é o cacau, gerando uma sensação amarga para os produtores de chocolate e consumidores em geral. Meses atrás o quilo saía por pouco mais de R$ 30, e agora está no assustador patamar de R$ 150, e subindo.

O motivo está na dificuldade dos dois maiores produtores globais, Gana e Costa do Marfim, que respondem por mais de 60% do que é consumido no mundo. Cacau e chocolate estão se tornando sinônimos de iguaria finíssima, acessível a poucos.

Commodity central na pauta de exportações brasileiras (mas não só), a soja sofrerá uma quebra de safra de pelo menos 5%. O fato deverá ter impacto significativo na economia do país, afetando a renda dos trabalhadores, as receitas dos produtores e o PIB (Produto Interno Bruto). Péssima notícia para todos, sem exceção.

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Por fim, um produto mais requintado mas que também tem forte consumo global, o azeite registrou aumento de 54% em seus preços nos últimos meses. Seria irônico se não fosse trágico – há registro de supermercados colocando lacres antifurto nas embalagens.

A alta no valor do azeite é devida a questões climáticas que prejudicaram a safra das oliveiras na Espanha, em Portugal e na Grécia, maiores produtores mundiais do produto.

Dada essa realidade, chamou a atenção, dias atrás, um evento no mínimo bizarro. Na região do Pantanal, um fazendeiro usou 25 agrotóxicos diferentes, um deles contendo a substância 2,4-D – a mesma presente na composição do chamado agente laranja.

Trata-se de um desfolhante químico altamente tóxico usado pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã. Ele realizou o ato em uma área de oitenta mil hectares, o equivalente ao município de Campinas (uma cidade de grande porte, frise-se) para plantar capim e preparar pasto para o gado. Pobre natureza.

O que se vê, a rigor, é um combo que tem a crise climática, pragas e, claro, a ganância e a falta de empatia do ser humano médio. Receita perfeita para tragédias que já assistimos quase todos os dias.

É claro que nosso passado nos condena, porém, colocado desse modo, não é absolutamente correto dizer que o passado nos condena, uma vez que se trata do passado-presente, atuante, resiliente e incitante nos piores erros, crimes e pecados da moral pública.

Esse passado-presente, retumbante não só nos hinos, é a prova da nossa corrida dos ratos. Como diz o ditado popular, condenados (ao menos até agora) ao eterno retorno do círculo vicioso, “vendemos o almoço para comprar o jantar”. Às vezes, muitas vezes, “o rabo também abana o cachorro”.

Vale reler Triste fim de Policarco Quaresma ou o Alienista, afinal, parece que foi ontem mesmo, de manhãzinha…

Mas, firmes e fortes, como país varonil, citamos a única frase em latim que a educação pública permite conhecer (vinda lá das Minas Gerais): “Libertas quae sera tamen”, ainda que a liberdade venha só à tardinha…

(André César é cientista político e Vinício Carrilho Martinez é cientista social)

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