Texto de Noemi Araújo
Você sabe qual a diferença entre uma política de Estado e uma de Governo? Quando falamos em políticas de governo, estamos nos referindo aquelas que podem corresponder à expressão da chamada “vontade nacional”, num dado momento do país, sob a gestão de um governo específico e que tem um caráter mais passageiro. Mas é possível que essa política se perpetue, sendo continuada, mesmo com modificações durante a gestão de um novo governo; assim, ela passa a ser uma política de Estado.
As políticas de governo respondem às demandas que normalmente se apresentam na agenda política do chefe do Poder Executivo (presidente) e/ou por conta da dinâmica política e econômica até exterior que impacta diretamente no país; como o caso da pandemia, por exemplo. Já as de Estado, como definido pelo Instituto Millenium: “envolveu estudos técnicos, simulações, análises de impacto horizontal e vertical, efeitos econômicos ou orçamentários, quando não um cálculo de custo-benefício levando em conta a trajetória completa da política que se pretende implementar”.
Diante dessa explicação, foi ainda em meados dos anos 90, durante a gestão do ex-presidente FHC (1994-2002), que se criou os primeiros programas de transferência de renda; a proposta, foco e o planejamento estratégico, inclusive do Cadastro Único de Programas Sociais (Cadúnico) – um censo da população de baixa renda no Brasil -, e de outros quatro programas: Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Cartão Alimentação e Auxílio Gás, que datam ainda de 2001, antes do governo Lula (2003-2010).
Mas o interessante é justamente perceber que uma política de Estado tem este caráter permanente, no qual podemos observar a trajetória de continuidade abarcando modificações, reorientações políticas e ajustes administrativos. Dessa forma, graças ao Cadúnico, durante a gestão Lula foi possível utilizar a base de dados para unificação desses programas transformando-os no Bolsa Família (Lei 10.836/2004) em conjunto com a criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, responsável pela estruturação institucional do programa.
A época, o valor do benefício mensal para a família definido em Lei foi de R$ 50,00; para as mães em amamentação, com filho de até seis meses, R$ 15,00 por beneficiário, sendo limitado R$ 45,00 por família. Sendo que esses benefícios eram concedidos para famílias com renda mensal de até R$ 100,00, por pessoa. Atualmente (2020), dados da Caixa Econômica mostram que o benefício básico é de R$ 89,00 mensais, concedido para famílias em situação de extrema pobreza. E, o “benefício variável é destinado às famílias em situação de pobreza ou extrema pobreza que tenham em sua composição gestantes, nutrizes (mães que amamentam), crianças e adolescentes de 0 a 15 anos. O valor de cada benefício é de R$ 41,00, podendo ser acumulado até 5 benefícios por família, chegando a R$ 205,00 por mês.[1]
Realmente, R$ 89,00 ou quem sabe R$ 205,00 seria suficiente para comprar todo o peixe do mês, basta ensinar a pescar; afinal, o quilo da pescada-amarela em Brasília está por volta de R$ 27,90, totalizando sete quilos de peixe para toda a família por 30 dias.
Ainda em 2011, sob a gestão do governo Dilma, o atual Presidente Bolsonaro, então deputado federal afirmou: “o Bolsa Família nada mais é do que um projeto para tirar dinheiro de quem produz e dá-lo a quem se acomoda, para que use seu título de eleitor e mantenha quem está no poder;, (…) e nós devemos colocar, se não um ponto final, uma transição a projetos como o Bolsa Família”, afirmou. Em 2017, em um evento em Barretos (SP), como já possível candidato à Presidência, criticou: “para ser candidato a presidente tem de falar que vai ampliar o Bolsa Família, então vote em outro candidato. Não vou partir para a demagogia e agradar quem quer que seja para buscar voto.“
Durante as eleições de 2018, os programas assistenciais que sempre foram rotulados como “voto de cabresto”, passaram a ter outro discurso. Já como candidato do PSL, em entrevista à TV Record, o presidente defendeu: “é um programa que temos que manter e, por questões humanitárias, olhar com muito carinho”. Depois de eleito, o Governo Federal editou uma medida provisória que garantiu cerca de duas parcelas do programa, para os meses de novembro e dezembro em 2019.
Com o contexto da pandemia, demandas quanto benefícios permanentes e não pontuais para auxiliar a população brasileira na recuperação econômica levou o governo a apresentar a proposta do chamado Renda Brasil, a fim de substituir o Bolsa Família e o Auxilio Emergencial, além de englobar outros programas como o Seguro Defeso e o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
No entanto, depois de todo o anúncio do governo federal, em 15 de setembro, o presidente Jair Bolsonaro foi as redes sociais e desautorizou sua equipe econômica, proibindo seus subordinados de voltarem a “falar em Renda Brasil até 2022 (…) e que permaneceria com o Bolsa Família”. Todavia, na última segunda-feira (289), o Presidente, a equipe econômica e líderes partidários apresentaram o Renda Cidadã, propondo por meio dos recursos do Fundeb (já explicados aqui em artigo anterior) e o uso de precatórios (pagamentos devidos depois de ação judicial contra municípios, Estados ou a União) o pagamento de benefício de R$ 200,00 por família a serem pagos a partir de janeiro.
A questão é que no final das contas, de Bolsa Família à Renda Cidadã, pouco se avança sobre à ótica de se ensinar a pescar, que seria o complemento da política pública. Assim, o que você pode entender, depois de todo esse histórico é que: o “novo” Renda Cidadã tende a ser apenas a mudança de nomenclatura do Bolsa Família, ou seja, o flerte com mais uma política de governo e não de Estado.
[1]Caixa Econômica Federal. Bolsa Família. Disponível