Imunidade parlamentar: prerrogativas de função ou privilégio para a impunidade?

Congresso Nacional
Sede do Congresso Nacional, que reúne a Câmara e o Senado Federal/arquivo/Agência Senado

Texto de Noemí Araújo

A imunidade parlamentar é um assunto que tem recebido recorrente destaque na mídia; tendo em vista diversos casos recentes, por que alguns parlamentares não são punidos ou sofrem sanções como alguns cidadãos comuns sofreriam caso cometessem o mesmo crise ou contravenção? Sabemos que alguns se sentem até deuses depois que colocam aquele bóton, mas são intocáveis? Afinal, o artigo 5º da Constituição Federal garante que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (…)”. Mas, a verdade é que esse ‘todos’ tem se referido apenas a alguns. Então por que essa diferenciação de tratamento?

O caso mais recente é o da deputada Federal Flordelis (PSD-RJ) indiciada pela Polícia Civil por cinco crimes, entre eles: homicídio. O intuito não é abordar os detalhes ou aprofundar a discussão quanto aos supostos crimes cometidos, mas sim, entender o porquê de ela não ter sido presa imediatamente como os outros indiciados.

Nossa Constituição[i] garante, (redação dada pela Emenda Constitucional nº 35/2001) nos §§ 1º ao 3º do art. 53 da Seção V, que “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos; (…) que desde a expedição do diploma, serão submetidos a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal (STF); e, que não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”. Os parlamentares apenas perderão o mandato se infligirem regras apresentadas nos artigos 54 e 55, quando há quebra de decoro parlamentar e excesso de faltas, por exemplo. Nesse caso, a perda do mandato (cassação) será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por maioria absoluta, mediante provocação do Presidente da Casa ou partido político representado no Congresso Nacional, garantida a ampla defesa – o direito de se defender – na Comissão de Ética; e, depois, no Plenário, se for o caso. Desde 2013, tais votações passaram a ser abertas, públicas.

Na prática, os processos não são tão simples, pois os parlamentares desfrutam de algumas imunidades, como: 1) material, que permite a manifestação de pensamento, opiniões durante seu mandato dentro ou fora do ambiente político de trabalho (vereadores têm esse direito também); 2) processual: garantia de interrupção de processos contra parlamentares quando, no voto, há maioria simples favorável ao encerramento do caso; 3) prisional: garantia de proteção contra a prisão, exceto no casos dos crimes inafiançáveis (crimes hediondos, racismo, entre outros); 4) probatória: de não serem obrigados a testemunhar sobre pessoas e informações recebidas ou dadas; 5) prerrogativa testemunhal: garantia de escolher melhor dia, horário e local para prestar depoimento; e, 6) foro privilegiado: garantia de que cabe ao STF a decisão de investigação e prisão, ao invés da justiça comum.

Mas, em 2018, os ministros do STF decidiram que quando um parlamentar é investigado por crimes que não têm relação com o mandato, o caso não garante foro no Supremo e deve ser julgado na primeira instância. Por isso, que no ano passado, o caso da Flordelis chegou a ser analisado pelo ministro Luiz Roberto Barroso, que reafirmou a competência do Ministério Público do Rio de Janeiro e da Polícia Civil sobre o caso.

O Brasil hoje, de uma escala de 0 a 1, atinge 0,8 no nível de imunidade parlamentar, um dos maiores níveis do mundo, na comparação com 90 países.[ii] E, acredite, parlamentares cassados ainda desfrutam do direito de aposentadoria especial, como o caso do ex-senador Delcídio Amaral (então líder do Governo Dilma e cassado por quebra de decoro, por obstrução de investigação da Lava-Jato) que recebe um terço de seu salário, o equivalente a R$ 11 mil reais mensais. Uma PEC apresentada pelo Partido Podemos busca impedir a concessão de aposentadoria a parlamentares cassados e condenados em 1º instância pela justiça, em casos de corrupção. Como também, há uma PEC que propõe o fim do foro privilegiado, em tramitação na Câmara desde o ano passado, mas que perdeu prioridade por conta da pandemia.

A questão é que a atual legislação busca proteger e prevenir os agentes políticos de prisões arbitrárias e/ou de perseguições políticas. Imagine se todas as acusações, disputas ideológicas, partidárias ou pessoais – ainda mais em período eleitoral -, se tornassem processo e inclusive prisão preventiva ou temporária, inclusive do chefe do Poder Executivo, por exemplo? Mas até que ponto, tais prerrogativas de função não têm sido utilizadas como privilégios para assegurar a impunidade? A tão esperada reforma político-eleitoral se faz cada dia mais urgente e necessária, abarcando a revisão e limitação dos privilégios políticos, para que não encoberte crimes que vão do discurso de ódio mascarado de liberdade política de opinião à corrupção ativa e passiva, aos crimes eleitorais, às quebras de decoro parlamentar até os casos de homicídio.

[i] BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Câmara dos Deputados, [2020]. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/legislacao/constituicao1988/arquivos/ConstituicaoTextoAtualizado_EC%20105.pdf

[ii] REDDY, Karthik; SCHULARICK, Moritz; SKRETA, Vasiliki. (2016). Imunity. Disponível em: http://media.wix.com/ugd/82c37c_d6d7841a1c4d47abb5330375b3c0159e.pdf Acesso em: 25 ago. 2020.

Informativo Misto Brasil

Inscreva-se para receber conteúdo exclusivo gratuito no seu e-mail, todas as semanas

Assuntos Relacionados


Informativo Misto Brasil

Inscreva-se para receber conteúdo exclusivo gratuito no seu e-mail, todas as semanas